sábado, 19 de junho de 2010

José Saramago, aquele discurso


         
O desaparecimento de José Saramago enluta o mundo literário, a "Ibéria", a Lusofonia e Portugal. São-lhe devidas, pois, as homenagens oficialmente decretadas, como também são merecidas as mais diversas homenagens e manifestações, que partilham um sentimento de perda colectivo, chegada a hora da partida do escritor.

Há bocado, numa peça de um canal de televisão, a partir da Azinhaga, vimos que naquela pequena localidade existe uma Rua com o seu nome, outra com o nome da mulher, Pilar, e ainda uma estátua do Nobel. Nessa mesma peça, o Presidente da Junta de Freguesia  da terra natal de Saramago contou que quando informou o laureado sobre a estátuta, José Saramago respondeu que "enquanto fosse vivo não queria homenagens", o que, todavia, não veio a acontecer, acabando, depois de insistências várias, por estar presente na inauguração.

A propósito desta passagem, muito habitual no nosso País, ocorre interpelar - porquê? Acho bem mais bonito e verdadeiro, quando possível, que aqueles que de entre os nossos mais se distinguem possam receber, em vida, os reconhecimentos e tributos que lhes caibam, com justiça.

Sabemos que, na maior parte das vezes, assim não acontece, e que só o filtro do tempo acaba por eleger a obra, já consideravelmente separada da personagem, sendo o campo das artes e das letras bastante ortodoxo neste domínio.

Isto, também serve para dizer que não vou agora carpir sobre o extinto, o qual, apesar de ter tido a felicidade de receber em vida bastantes louvores e distinções, desde a Azinhaga até Estocolmo, nunca lhe consegui ler um livro do princípio ao fim.

Curiosamente, de tudo em Saramago, aquilo que mais me tocou e guardo mais vivo, não foi nada que lhe tivesse lido, mas o discurso que lhe ouvi, na cerimónia de entrega do Prémio,  a 8 de Outubro de 1998, razão pela qual, com o respeito, a franqueza e a lealdade de uma evocações singela, aqui se reproduzem as palavras então ditas pelo Nobel Português:

"Cumpriram-se hoje exactamente 50 anos sobre a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não têm faltado comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, como a atenção se cansa quando as circunstâncias lhe pedem que se ocupe de assuntos sérios, não é arriscado prever que o interesse público por esta questão comece a diminuir já a partir de amanhã. Nada tenho contra esses actos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desaconselha, permita-se-me que diga aqui umas quantas mais.

Neste meio século não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que moralmente estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.

Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aquelas que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Pensamos que nenhuns direitos humanos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem e que não é de esperar que os governos façam nos próximos 50 anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra. Com a mesma veemência com que reivindicamos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa tornar-se um pouco melhor.

Não esqueci os agradecimentos. Em Frankfurt, no dia 8 de Outubro, as primeiras palavras que pronunciei foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prémio Nobel da Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos torno a agradecer. E agora também aos escritores portugueses e de língua portuguesa, aos do passado e aos de hoje: é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem hajam portanto."

(Discurso de José Saramago retirado do Blogue Portugal em linha - a Comunidade Lusófona online)

Bem Haja!

2 comentários:

Inez Dentinho disse...

É preciso honrar os mortos em vida e os vivos em vida.
A homenagem da estátua e a toponímia nem sempre foram correspondidos pelo próprio no respeito que deve ao que é sagrado para os outros e à critica que, por diferentes motivos, foi surgindo à sua obra. «Vaidade, tudo é vaidade», aplica-se como uma luva.

Anónimo disse...

Aplica-se a quem ?